quarta-feira, 8 de novembro de 2017

O PRIMEIRO MAPA DO MUNDO

A imobilidade movente do mar,
paisagens recém traçadas pelo vento
Ângulos habitáveis,
estrelas que sangram para brilhar

Corpos verbais e verbos de carne,
objetos ainda não cicatrizados por seus nomes
A pluma que corta,
o deserto calculado de vazio

A falsa distância entre o diamante e o carvão,
traços sinuosos que o mar apaga
pequenos cadáveres da memória,
corações ligados por cordas

– Raras são as âncoras que conseguem fincar suas asas no ar, poucos os móbiles perpétuos a flutuar

Palavras sem dicionários furam o véu do real,
um novo diamante é arrancado do abismo,
flores radioativas brilham com um estranho rigor

A pedra trabalhada como se fosse carne,
a menor rocha para a maior pluma,
a máscara que não se deixa domesticar

O azul arde nas bordas,
num tatear de nomes perdidos e línguas
sem asas
O peso flutua e a pluma pesa,
as placas pedem desvio

A cartografia de seus passos contém as origens da tempestade
Seu peito possui barulho de mar
Seus lábios carregam a arte de dançar até a incandescência
da dúvida

Pela chuva contida em sua face de sol;
letreiros luminosos anunciam a primavera

– O mar se estica de ponta a ponta e encontra sua medida;
o mar sempre recomeça; o mar escreve sempre no plural


["O primeiro mapa do mundo" In: Máquina de fazer mar, 7Letras, 2016, AGC]


quinta-feira, 19 de outubro de 2017


Os poetas escrevem para os poetas. São os poetas que prestam homenagens ao seu próprio trabalho e todo esse mundo se parece bastante com qualquer outro dos tantos mundos especializados e herméticos que dividem a sociedade contemporânea. Os enxadristas consideram o xadrez como o ápice da criação humana, têm suas hierarquias, falam de Capablanca como os poetas falam de Mallarmé e, mutuamente, prestam-se todas as homenagens. Mas o xadrez é um jogo, enquanto que a poesia é algo mais sério, e aquilo que resulta simpático nos enxadristas, nos poetas é sinal de uma mesquinhez imperdoável. Os jogadores de xadrez não têm a pretensão a um papel tão universal, e o que se pode até lhes perdoar, nos poetas se torna imperdoável. Em consequência desse isolamento tudo incha e mesmo poetas medíocres inflam-se de modo apocalíptico, e probleminhas fúteis ganham uma importância estonteante. Somente uma cegueira voluntária pode explicar o inaudito simplismo com que se protegem os poetas (pessoas em geral não imbecis, mas ingênuas) quando se aborda a sua arte. A primeira consequência desse isolamento social dos poetas é que o mundo poético todo se infla, e mesmo os criadores medíocres alcançam dimensões apocalípticas e, pelo mesmo motivo, problemas de pouca importância ganham uma transcendência que assusta. [...]. O estilo se desumaniza; o poeta não toma como ponto de partida a sensibilidade do homem comum, mas a de outro poeta, uma sensibilidade ‘profissional’, e, entre os profissionais, se cria uma linguagem tão inacessível quanto a dos outros dialetos técnicos; e, subindo uns sobre os outros, formam uma pirâmide cuja ponta se perde no céu, enquanto nós ficamos embaixo um tanto confundidos. Mas o mais importante é que todos eles se tornam escravos de seu instrumento, porque essa forma é já tão rígida e precisa, sagrada e consagrada, que deixa de ser um meio de expressão; e podemos definir o poeta profissional como um ser que não pode expressar a si mesmo porque tem de expressar os versos. [...]. Os poetas ainda não compreenderam que não se pode falar de poesia em tom poético e por isso suas revistas estão cheias de poetizações sobre a poesia, quase sempre horripilantes por seu estéril malabarismo verbal. São a esses pecados mortais contra o estilo que os levam o temor que sentem da realidade e a necessidade de encontrar, a todo custo, uma afirmação do seu esmorecido prestígio. [...]. Não se dão conta de que se as escolas não ensinassem às crianças o culto dos poetas, em suas tristes e tão formais aulas de língua nacional, e se esse culto não se mantivesse por inércia entre os adultos, ninguém, além de uns poucos aficionados, se interessaria por eles. Não querem ver que a suposta admiração ao canto versificado é, em realidade, o resultado de muitos fatores como o interesse esportivo (porque assistimos a um recital poético do mesmo modo que a uma missa – sem compreendê-lo – e apenas cumprindo um ato de presença frente a um rito; e porque nos interessa a corrida dos poetas em direção à glória como nos interessam as corridas de cavalos); não, esse complicado processo da reação das multidões se reduz para eles à fórmula: ‘o verso encanta porque é belo...’. Para os poetas tudo não passa de: o cantor canta, e o ouvinte, encantado, ouve. [...]. Porém fiquem tranquilos: nada nunca mudará nos poetas. E não tenham a ilusão de que em face dessas forças coletivas que falsificam nossa percepção individual, eles vão mostrar um dia alguma vontade de resistência – para que ao menos a arte não fosse mentira e cerimonial, mas sim um encontro verdadeiro do homem com o homem. Não, esses monges preferem se ajoelhar. Monges? Até a religião morre no instante em que se transforma em rito. 


[Contra os poetas – Witold Gombrowicz, 1947].

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Entre o abismo e o abrigo, casa é
uma pálpebra que treme

O rumor de suas ondas se mantém presente
pelas conchas dos ouvidos de quem pensa que a habita

Uma casa escondida num cofre,
uma casa atada ao naufrágio de qualquer solução,
a Rua do Mundo presa na vulva de sua Casa;
uma casa em permanente expansão

A casa e sua geometria labiríntica,
a casa que não abriga,
a cidade e suas infindáveis serpentes de concreto,
a casa suporta o mundo e suas inesgotáveis chuvas oblíquas

Casas sonolentas assistem ao estranho vagar dos dias,
casas mal vividas,
margens de despidas engrenagens,
máquinas eficientes de viver

A casa respira e se distende
rumo à ampliação de sua simetria
A casa não se limita,
o crescimento interno da casa não se deixa sentir

Casas aladas são esboços de um coração que ainda baterá
A casa concentrada atravessa a casa expansiva
A casa e seus escombros rejuvenescem os homens

Nas páginas espumantes da casa-corpo,
toda sombra guarda uma palavra;
ali, são as pernas que carregam seus escombros

A forma trágica de uma simples maçã preenche os silêncios da casa
Um sonhador desperta os móveis adormecidos e a casa flutua
entre um equilíbrio íntimo de paredes e brilhos renovados

Corredores se ampliam
em um estranho murmúrio de sol
Flores de cicutas enfeitam os vasos
O amor adoeceu sua casa,
o amor entupiu sua pia

Aqui, esta casa se afunda pelo meio dos cabelos e
a vida mente diante das estruturas
Luas mortas brilham no firmamento da razão

As ruínas carecem de método,
pássaros alheios atravessam continentes errantes
A casa nos sonha
Os mapas transbordam

É a cidade que nos imagina
quando caminhamos
mais estranhos do que o paraíso,
mais remotos do que o espaço,
desentranhados dos velhos dicionários

Também o relâmpago nos olha
quando acompanhamos os ingênuos com os seus jornais,
a ciência experimental dos solitários,
a ciência lírica dos desenganados

Na geometria do olho cada palavra contêm um diminuto oceano,
pela clausura da pele brilha a metáfora dissonante,
para além de todas as casas em que alguém já sonhou habitar
– A cidade é toda ela a casa do homem

É a cidade que nos sonha


("Casa" in: Máquina de fazer mar, 2016, 7Letras, AGC)


quinta-feira, 31 de agosto de 2017

É com satisfação que acabo de publicar um artigo na revista Plural da USP sobre o Flávio de Carvalho e seu livro mais etnográfico "A origem animal de deus". A quem interessar possa, segue aqui o link: https://www.revistas.usp.br/plural/article/view/122540/133161

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Quando um deus morre, a multidão se pergunta:
para que medir a cidade com passos?
Os pés não têm memórias?

Distraidamente um homem sem sombras carrega
suas paisagens remendadas no bolso, as mastigará
nas primeiras horas de um janeiro qualquer

Homem atravessado por um céu sem nuvens,
levará na sacola toda uma coleção de paisagens subtraídas

Nenhum dia será belo como o sol que se apagará
nos horizontes dos aeroportos e em seguida virá se inflamar
na pista de pouso dos corredores e dos prédios

No dia em que o teto cair qual e tal a maçã de Newton,
aí sim brilharão com a maior das intensidades translúcidas
os corpos translúdicos e seus corações cicatrizados

Um dia, quando este homem estiver dourado de cansaço,
tomará tanto sol que ficará todo iluminado por dentro
e então verá o outro ocidente de haikais
que os barcos vêm trazendo

Aí então, o balé improvável dos astronautas
será composto por formas habitáveis e
pelo sangue coagulado de continentes vicários
– o pós espanto da pós poesia do pós contemporâneo

E os deuses não mais se cansarão de escrever o real

["O homem sem sombra": Máquina de fazer mar (2016, 7Letras, AGC)]

O poeta não só enxerga, como vê a construção
junto de quem constrói, tudo na mais maré mais alta
de oceanos sem margens

Tudo pela clausura móvel da pele,
pelo reflexo de um âmbar, para que a paisagem escape
de sua própria escravidão

Pelo rigor na experimentação e pela experimentação no rigor;
construções em ruínas de construções
– like a slow burn

O chão sustenta o tapete, que fixa
a cadeira, que sustenta os pés
Os dicionários são incômodos,
os nomes provisórios

O voo de um pássaro não se prende a moldura alguma

_ quase nunca o calendário cardíaco corresponde ao calendário solar. o corpo é a medida da concretude das coisas, mas, por outro lado, é na mente que as ideias fluem; daí quem sabe, algumas ilusões geográficas _

É preciso nascer para provocar cortes nas escrituras do passado
Nascer junto com os mortos, escrever e ser escrito

Um dia, a localização poética ainda haverá de ampliar
a localização geográfica

["Slow burn": Máquina de fazer mar (2016, 7Letras, AGC)]

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Do corpo só irá ficar o arrepio – ela dizia –, enquanto
era no contrapelo de sua pele que cresciam os tigres,
seus tigres todos à espreita como um câncer bom

Em sua sala de chuva ela fazia nascer as frutas
antes de qualquer chuva, paisagens surgiam
de suas sombras rumo à melancolia de outro azul

Medusa urbana trazia nos olhos um laboratório
de estranhezas, seus lábios de chumbo derretido
espelhavam uma estranha simetria de luzes

Tudo que não era treva fulgurava
no far west de seu tédio,
por debaixo da sombra de algum deus

Pequenos crimes de amor e algumas ilhas turvas
atravessavam as janelas anônimas dos olhos

A glacialidade bruta de um beijo dissolvia os mapas e
os ponteiros grudados na epiderme das paredes

A geografia quântica de suas unhas arranhava
e ampliava o sol da meia-noite

Flores eram germinadas por suor e susto,
o céu ainda tinha a cor das suas unhas

Era preciso ter a sede dos afogados,
ser invadido por este azul, pela melancolia do azul

Quanto mais se vivia, menos se morria
E todo o resto era literatura

("A melancolia do azul" in: Máquina de fazer mar, 7Letras, 2016; AGC)

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Sim, talvez o tempo não passe mesmo da palavra tempo
adormecida na serpente da língua, esta lâmina
de carnes indizíveis que dança pelas tardes inevitáveis e
pela chuva que deságua para fora do poema

Éramos frágeis animais com nossas luas soltas
e alguns silêncios coagulados num túnel a transbordar
suas delícias agridoces contraindicadas para quem
ainda acreditasse nas ficções do meio-dia

Palavras mínimas levavam muito tempo para se dissolverem
com aqueles corpos faiscando por paredes translúcidas
e janelas desmedidas de cortinas diárias e diáfanas

Éramos frágeis animais com nossas bússolas invertidas
e diamantes de destruição; uma sombra líquida nascia
no mar justaposto do teu ventre

O caroço morto de uma estrela renascia e brilhava
através da alegria amarga de um girassol

Atados pelo sol, surdos a qualquer música
que não viesse de nossas próprias pulsações,
éramos um ruído auditivo e um sopro sonoro,
– mínima lâmina –
ecoando no interior do interior do interior

Os primeiros mapas do mundo eram da cor de sua pele
[II]
Cabelos de relâmpago cobriam o véu dos óculos
Relâmpagos nos cabelos reuniam a ferrugem carmesim do sol
O céu era preso por uma cola de goma arábica

Pessoas de poucas estrelas se misturavam às paisagens
para navegar nas pálpebras de óculos sem molduras
A cidade guardava seus acervos nos incêndios da memória
– nua como uma terra

Cabelos em relampejo cobriam as cortinas da lua
– árida pantera –,
estéril orbe de cabelos infecundos a afundar por treva adentro

Anjos do éter traziam suas almas
incendiadas pelos outdoors, de fio a pavio,
as entranhas da noite eram presas por uma cola de goma arábica

Eram esses supermercados de corações usados,
doces mercados de corações descartados;
Os supermercados do amor estão sempre lotados

[III]
Era este um mundo sem calmantes e sem troféus
Eram estas esquinas inevitáveis
Era esta uma procissão de Macunaímas dissuadidos
– procissão dos desiludidos no amor

Um filme queria rasgar a tela
Peixes eram cobertos por serpentinas envelhecidas
Cigarros também tombavam como folhas mortas
As meninas e suas pélvis eram reguladas por redes
de apanhar borboletas

No mercúrio cromo do mar uma mulher se vestia de avesso
com seu parangolé de navalhas,
carregava sua capa composta
pelo abrigo de outro abismo solar

Ninfa do cimento desfilava sobre o vórtice da vertigem,
bebia seu Dionísio engarrafado para depois deixar raiar
seu eclipse na mais fina flor

[IV]
Dedos lúcidos percorriam outros azuis,
os olhos possuíam a mesma voragem laminada do tempo,
– este rei pândego iluminado por estrelas do éter,
um deus endomingado de chumbo derretido:
o tempo, lapso e colapso a compor
a chuva imóvel deste nosso tempo

Ela me fez acreditar no infinito da linguagem


["Razor love" in: Máquina de fazer mar (2016,7Letras); AGC]

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Não, talvez o tempo não passe mesmo da palavra tempo
adormecida numa lâmina desmedida
de carnes indizíveis

Branca fosse a página, mais agudo seria o dia,
mais lenta seria a paisagem,
mais amargo seria amar

Aqui as flores são de sangue,
blood flowers,
desconfie das flores

Amantes carregam ímãs voltados para o acaso
dos desencontros, para que a rua noturna
se fixe na placa sensível do dia

Um astronauta advinha o vinho provindo da garganta
a anunciar a próxima primavera convulsa;
dois abismos fabulam entre si

Eva sem treva carrega o tédio dos astronautas em si,
traz a vertigem de um oceano em cada olhar
Seria tudo travessia?

Ainda que nossas peles não fossem exatamente
livros de viagem, 
ainda assim,
o caroço morto de uma estrela
renascia e brilhava através da alegria
amarga de um sol

Éramos precários acidentes
Representávamos a menor palavra faiscando
na geometria do olho

Éramos ossos germinando ossos
Éramos sonhos em movimento
Carregávamos escombros de diamantes
Éramos bibliotecas de carne


["Bloodflowers" in: Máquina de fazer mar (7Letras, 2016); AGC]

segunda-feira, 24 de julho de 2017

A grande ilusão é a de que os prédios dançam
para acompanhar os passos dos novos amantes

Em ato, amantes modernos perdem seus nomes próprios e
habitam as últimas claridades do fogo

Em ato de amantes, a íris do dia muda de cor,
novos arranjos são formados por mares lunares
– escuras planícies de magmas solidificados

Com seus peitos de sol denso eles conquistam, por instantes,
os espaços por onde escapariam os voos dos pássaros
e as formas transitórias das flores

Dos naufrágios de amantes recentes é que surgem 
as imagens feitas pelas sombras singulares 
dos obscuros contornos das coisas:
trajetos entre bordas, pontes entre quedas, asas sobre asas

A grande ilusão é a de que os dias
não oxidam os jardins e não corroem os pomares

Flutuam significados e oscilam significantes,
verbos levitam enquanto palavras são suspensas pelo ar
Universos são desconcertados e recompostos por
travessias de plumas novas

E a maré da vida a cobrir nosso assombro
E o inconsciente marítimo a escorrer sobre tudo
E o verdadeiro verão, quase sempre glacial
E o mar uterino do Leblon a embalar nossa embriaguez

AGC in: Máquina de fazer mar (2016, 7Letras)

domingo, 23 de julho de 2017

Não tinha túnel, o lado de dentro refletia o lado de fora
Nadando assim em uma piscina de olhos verdes,
alguém esperava o tiroteio passar

Delírios oceânicos germinavam dos óculos
(pequenas máquinas de enxergar),
livros brotavam do peito; 
a cidade era dos arranha-céus

Sim, mas mesmo assim a felicidade não podia ser medida
como uma mera expectativa de pavimentação e argamassa
Em cada edifício alguém enlouquecia e tentava arranhar o céu

A cidade era daqueles que arranhavam os céus para depois
incendiarem a própria noção de céu, 
como os que suspendem as luas de isopor 
e depois desfolham os calendários,

como os vulcões presos dentro das lombadas dos dicionários;
como os encaixes que se desencaixam
e permanecem belíssimos

A cidade era dos arranha-céus, 
daqueles que afiavam as garras 
para depois tranquilamente beber
seus refrigerantes de petróleo

Sim, mas ainda assim flutuavam os pássaros de Hitchcock,
plainavam os corvos de Allan Poe
e planetas entravam em fusão

Ainda assim permaneceriam os venenos de veludo,
os amores sem sobrenomes;
os incêndios jamais corresponderiam aos destroços

A cidade era dos inocentes abrumados de sabedoria,
daqueles que queriam as profundezas sem imersão, 
dos que dançavam sem êxtases ou possessões, 
dos mestres na arte de mergulhar no raso,
dos iluminados no escuro

A cidade pertencia àqueles que fotografavam tudo,
dos que arranhavam os céus com as unhas 
e depois saíam distraídos para caminhar
com suas desmedidas
máquinas de fazer mar

Ainda assim nos permaneciam as asas crescendo durante a noite, 
enquanto os inocentes dormiam; asas que iam inflando
como giletes a escorregar de dentro de nossas peles até

incharem tanto que logo arrebentavam e nos deixavam tontos; tombados e atordoados no continente do chão

Nascíamos, também

["Rua da Aridez" in: Máquina de fazer mar (2016, 7Letras, AGC)] 

sábado, 8 de julho de 2017


A pedra abre a cauda de ouro incessante, \ só a água fala nos buracos. \\ São palavras pronunciadas com medo de pousar [...] Primaveras extasiadas, espaços negros, flores desmedidas \ – todos os dias debalde repelimos os mortos. [...]. Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta \ no interior da terra. Somos \ um reflexo dos mortos, o mundo \ não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto \ – as palavras, palavras. [...]. Há palavras que é preciso afundar \ logo noutras palavras. \ Quando falo está ali outra coisa quando \ me calo. [...]. Ouve-se a dor das árvores. Sente-se a dor \ dos seres \ vegetativos, \ ao terem de apressar a sua \ vida lenta. Pôs a caminho \ um remexer de treva. E não tardam \ as dispersas primaveras, \ uma atrás da outra. [...]. A pedra espera ainda \ dar flor, o som \ tem um peso, há almas embrionárias. [...]. É preciso curar os mortos pela força / magnética das palavras [...]. Por trás da imobilidade, horas verdes \ caem de espaço a espaço \ – gotas de água no fundo de um subterrâneo. \ E em volta um círculo de montanhas atentas. \ No alto da noite côncava e branca, \ uma camélia gelada. E metem as árvores \ para o interior de um diamante polido [...]. E o céu. Basta-nos o nome para lidar \ com ele. \ O céu. \ Uma nódoa que se entranha noutra nódoa. \ – A água tem um som. \\ Mar inesgotável que desliza no silêncio. \\ Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: \ ouço-me para dentro. [...]. Catástrofes boreais, estrelas no caos / Há dias em que o céu e o inferno esperam / e desesperam. [...]. Nesta primavera há duas primaveras / e – perfume, ferocidade. / Turbilhão azul sem nome. / O sonho irrompe como hastes de cactos, \ pélago desordenado. [...]. Dentro de cada ser ressurgem os mortos. / A noite com outras noites em cima. [...]. Estamos como sons, peixes / repercutidos. O homem rói dentro do homem, / criam-se olhos que veem na obscuridade. / Deitamos flor pelo lado de dentro. [...]. Sob o fluido elétrico, / todo ano as árvores se desentranham em flor. / Pegou-lhes sonho também, / é um desbarato, uma profusão que as devora. / A alma é exterior, envolve e impregna o corpo. \ Na pedra, a alma da pedra. [...]. A primavera toca mais fundo na loucura, / revolve os vivos e os mortos. / – Todos deitam flor. // Cai o inverno dentro da primavera, / engrandece-a: tudo se entreabre em vertigem \ azul [...]. O que estava por baixo está agora por cima. / A flor esbraseada das noites sobre noites de concentração [...]. As bocas falam por muitas bocas. [...]. Todas as árvores se consomem em sonho. / São construções vivas, fixadas no silêncio, / suspensas na luz. / Ah, cinematografar a morte de uma flor, uma tábua atônita, / um nome transfigurado. [...]. Como se as palavras gesticulassem para dentro, / como uma primavera escorre morte. [...]. A pedra abre a cauda de ouro incessante, / somos palavras, / peixes repercutidos. / Só a água fala nos buracos. [...]. É uma inteligência exterior // É o diálogo dos dias e das noites, / entre as fazendas petrificadas e os grandes desmoronamentos das estrelas. / Mais braços na monstruosa árvore do sonho, / cores ininterruptas, a sombra da sombra. [...]. – pergunto, quem ama até perder o nome? [...]. Os astros mudam de cor \ de queda em queda. \ É preciso \ criar palavras, sons, palavras vivas, / obscuras, terríveis. / – Ouves os gritos dos mortos? // É preciso matar os mortos, / outra vez, / os mortos.

(Herberto Helder, 1966).

sábado, 17 de junho de 2017

terça-feira, 30 de maio de 2017

TRIPLO V (PORTUGAL)


A quem interessar possa, aqui uma seleta de poemas do meu último livro de poemas, "Máquina de fazer mar" (2016, 7Letras), que saiu agora no número 67 da revista virtual portuguesa Triplo V. Já havia publicado por lá em 2011 uma seleção de poemas meus na edição 11. Sempre bom ter leitores em terras "estrangeiras". Aqui, o link:  http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_65/augusto_cavalcanti/index.html

Aqui, o outro link para a seleção de 2011, que contêm poemas dos meus 2 primeiros livros: "Poemas para se ler ao meio-dia" (2006,7Letras) e "Os tigres cravaram as garras no horizonte" (2010, Circuito): http://www.triplov.org/poesia/augusto_cavalcanti/poemas/index.htm

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

"Elegia 1938" (CDA)

quinta-feira, 25 de maio de 2017


O Caos nunca morreu. Bloco intacto e primordial, único monstro digno de adoração, inerte e espontâneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras à Babilônia), a original e indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturbável como as flâmulas negras frenética e perpetuamente embriagada dos Assassinos (Hassasin ou Hassisin; ‘consumidores de haxixe’). O caos é anterior a todos os princípios de ordem e entropia, não é nem um deus nem uma larva, seus desejos primais englobam e definem toda coreografia possível, todos éteres e flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto. Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram as estrelas, o Império nunca começou, Eros nunca deixou a barba crescer. Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe ideias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas. Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele – sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política de sonho, urgente como o azul do céu. Para lograr abrir mão de todos os acentos e hesitações da história ilusória, é preciso evocar a economia de uma Idade da Pedra lendária – xamãs e não padres, bardos e não senhores, caçadores e não policiais, coletores paleoliticamente preguiçosos, gentis como sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como pássaros, equilibrados sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal. [...] Avatares do caos agem com espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos e sentidos. Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monolitos paranoicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias. A última proeza possível é aquela que define a própria percepção, um invisível cordão de ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do tribunal.


[1]





[1] (Hakim-Bey, 2003: 5-6). 

terça-feira, 4 de abril de 2017

A quem interessar possa, aqui o link da auspiciosa resenha que saiu hoje sobre o "Máquina de fazer mar" escrita pelo Sérgio Tavares de "A nova crítica". Muito bom saber que ainda existe crítica séria no país, para além da efeméride dos jornais e não restrita ao claustro da área acadêmica https://anovacritica.wordpress.com/2017/04/03/e-a-cidade-que-nos-sonha/

domingo, 26 de março de 2017

Máquina de fazer mar – AGC – 2016, 7Letras


Sugar o açúcar e lhe devolver o sugar
Sugar o açúcar e lhe devolver o amargar
De sugar a sugar
Do açúcar ao sal do mar

























As cascas das palavras
O sol da largura de um pé humano

O mar aberto vigora em tudo o que brilha
– que sabe brilhar sem e para além das lantejoulas

São os cartazes que sustentam o ar
Um soco de sol no rosto de quem chove

Uma sombra líquida a nascer no oceano invertido de seu ventre
Mínimos silêncios demoram para se fazerem verbo

Alguns navios eram mesmo ancorados no espaço

Amantes inexatos flutuavam na água,
radiantes cadáveres fingidos se equilibravam
em mais um verão inventado;
dentro de uma voragem portátil a se navegar

Eram eles: arqueólogos do instante, argonautas
da falta, escafandristas
do presente, cosmonautas
do desejo

A mais abissal imensidão de um mar não encerraria
sua mais sólida profundeza:
seu precipício não mais pararia de se renovar;
o oceano não seria fim nem princípio,
era meio