segunda-feira, 24 de julho de 2017

A grande ilusão é a de que os prédios dançam
para acompanhar os passos dos novos amantes

Em ato, amantes modernos perdem seus nomes próprios e
habitam as últimas claridades do fogo

Em ato de amantes, a íris do dia muda de cor,
novos arranjos são formados por mares lunares
– escuras planícies de magmas solidificados

Com seus peitos de sol denso eles conquistam, por instantes,
os espaços por onde escapariam os voos dos pássaros
e as formas transitórias das flores

Dos naufrágios de amantes recentes é que surgem 
as imagens feitas pelas sombras singulares 
dos obscuros contornos das coisas:
trajetos entre bordas, pontes entre quedas, asas sobre asas

A grande ilusão é a de que os dias
não oxidam os jardins e não corroem os pomares

Flutuam significados e oscilam significantes,
verbos levitam enquanto palavras são suspensas pelo ar
Universos são desconcertados e recompostos por
travessias de plumas novas

E a maré da vida a cobrir nosso assombro
E o inconsciente marítimo a escorrer sobre tudo
E o verdadeiro verão, quase sempre glacial
E o mar uterino do Leblon a embalar nossa embriaguez

AGC in: Máquina de fazer mar (2016, 7Letras)

domingo, 23 de julho de 2017

Não tinha túnel, o lado de dentro refletia o lado de fora
Nadando assim em uma piscina de olhos verdes,
alguém esperava o tiroteio passar

Delírios oceânicos germinavam dos óculos
(pequenas máquinas de enxergar),
livros brotavam do peito; 
a cidade era dos arranha-céus

Sim, mas mesmo assim a felicidade não podia ser medida
como uma mera expectativa de pavimentação e argamassa
Em cada edifício alguém enlouquecia e tentava arranhar o céu

A cidade era daqueles que arranhavam os céus para depois
incendiarem a própria noção de céu, 
como os que suspendem as luas de isopor 
e depois desfolham os calendários,

como os vulcões presos dentro das lombadas dos dicionários;
como os encaixes que se desencaixam
e permanecem belíssimos

A cidade era dos arranha-céus, 
daqueles que afiavam as garras 
para depois tranquilamente beber
seus refrigerantes de petróleo

Sim, mas ainda assim flutuavam os pássaros de Hitchcock,
plainavam os corvos de Allan Poe
e planetas entravam em fusão

Ainda assim permaneceriam os venenos de veludo,
os amores sem sobrenomes;
os incêndios jamais corresponderiam aos destroços

A cidade era dos inocentes abrumados de sabedoria,
daqueles que queriam as profundezas sem imersão, 
dos que dançavam sem êxtases ou possessões, 
dos mestres na arte de mergulhar no raso,
dos iluminados no escuro

A cidade pertencia àqueles que fotografavam tudo,
dos que arranhavam os céus com as unhas 
e depois saíam distraídos para caminhar
com suas desmedidas
máquinas de fazer mar

Ainda assim nos permaneciam as asas crescendo durante a noite, 
enquanto os inocentes dormiam; asas que iam inflando
como giletes a escorregar de dentro de nossas peles até

incharem tanto que logo arrebentavam e nos deixavam tontos; tombados e atordoados no continente do chão

Nascíamos, também

["Rua da Aridez" in: Máquina de fazer mar (2016, 7Letras, AGC)] 

sábado, 8 de julho de 2017


A pedra abre a cauda de ouro incessante, \ só a água fala nos buracos. \\ São palavras pronunciadas com medo de pousar [...] Primaveras extasiadas, espaços negros, flores desmedidas \ – todos os dias debalde repelimos os mortos. [...]. Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta \ no interior da terra. Somos \ um reflexo dos mortos, o mundo \ não é real. Para poder com isto e não morrer de espanto \ – as palavras, palavras. [...]. Há palavras que é preciso afundar \ logo noutras palavras. \ Quando falo está ali outra coisa quando \ me calo. [...]. Ouve-se a dor das árvores. Sente-se a dor \ dos seres \ vegetativos, \ ao terem de apressar a sua \ vida lenta. Pôs a caminho \ um remexer de treva. E não tardam \ as dispersas primaveras, \ uma atrás da outra. [...]. A pedra espera ainda \ dar flor, o som \ tem um peso, há almas embrionárias. [...]. É preciso curar os mortos pela força / magnética das palavras [...]. Por trás da imobilidade, horas verdes \ caem de espaço a espaço \ – gotas de água no fundo de um subterrâneo. \ E em volta um círculo de montanhas atentas. \ No alto da noite côncava e branca, \ uma camélia gelada. E metem as árvores \ para o interior de um diamante polido [...]. E o céu. Basta-nos o nome para lidar \ com ele. \ O céu. \ Uma nódoa que se entranha noutra nódoa. \ – A água tem um som. \\ Mar inesgotável que desliza no silêncio. \\ Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: \ ouço-me para dentro. [...]. Catástrofes boreais, estrelas no caos / Há dias em que o céu e o inferno esperam / e desesperam. [...]. Nesta primavera há duas primaveras / e – perfume, ferocidade. / Turbilhão azul sem nome. / O sonho irrompe como hastes de cactos, \ pélago desordenado. [...]. Dentro de cada ser ressurgem os mortos. / A noite com outras noites em cima. [...]. Estamos como sons, peixes / repercutidos. O homem rói dentro do homem, / criam-se olhos que veem na obscuridade. / Deitamos flor pelo lado de dentro. [...]. Sob o fluido elétrico, / todo ano as árvores se desentranham em flor. / Pegou-lhes sonho também, / é um desbarato, uma profusão que as devora. / A alma é exterior, envolve e impregna o corpo. \ Na pedra, a alma da pedra. [...]. A primavera toca mais fundo na loucura, / revolve os vivos e os mortos. / – Todos deitam flor. // Cai o inverno dentro da primavera, / engrandece-a: tudo se entreabre em vertigem \ azul [...]. O que estava por baixo está agora por cima. / A flor esbraseada das noites sobre noites de concentração [...]. As bocas falam por muitas bocas. [...]. Todas as árvores se consomem em sonho. / São construções vivas, fixadas no silêncio, / suspensas na luz. / Ah, cinematografar a morte de uma flor, uma tábua atônita, / um nome transfigurado. [...]. Como se as palavras gesticulassem para dentro, / como uma primavera escorre morte. [...]. A pedra abre a cauda de ouro incessante, / somos palavras, / peixes repercutidos. / Só a água fala nos buracos. [...]. É uma inteligência exterior // É o diálogo dos dias e das noites, / entre as fazendas petrificadas e os grandes desmoronamentos das estrelas. / Mais braços na monstruosa árvore do sonho, / cores ininterruptas, a sombra da sombra. [...]. – pergunto, quem ama até perder o nome? [...]. Os astros mudam de cor \ de queda em queda. \ É preciso \ criar palavras, sons, palavras vivas, / obscuras, terríveis. / – Ouves os gritos dos mortos? // É preciso matar os mortos, / outra vez, / os mortos.

(Herberto Helder, 1966).