segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Da catarse ao caos (E se não for pelo Fla-Flu, como crer na eternidade?)








E se não for pelo FLA-FLU, como crer na eternidade? O mundo de petróleo e sangue se desfaz no choro das massas. Um balé de vento nasce nos dribles dos anjos. Por de trás da tela é que se filma o que nenhuma televisão consegue captar. Nenhuma televisão consegue enxergar aurora no silêncio de onde agora surgem esses interplanetários do asfalto. O FLA-FLU é o ópio dos deuses.

Testemunhar um FLA-FLU é estar encantado de verbo, técnica, tabu e mágica; é ter fome de galáxia, tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Os alquimistas da grama rolam o diamante no verde das estruturas, deuses raros grudam a pedra abismal nos pés. No sacrifício da bola o gol afasta os maus espíritos, os dados se esfacelam e os breus se estilhaçam. Mas que não se enganem os inocentes: qualquer outro jogo é cinzento se comparado à essa guerra entre branco, preto, vermelho, verde e grená. Multidões são inventadas na destruição suntuosa dos bens que cada drible incendeia. Cada drible arde no instante seguinte, presentes são lacrados e pegam fogo no suor suntuoso dos gregos do agora. No FLA-FLU nada pode ser impessoal, os supermercados afetivos de lucro fecham suas portas.

Engoliremos as chaves de casa e celebraremos esse pó de cal e arroz que cai sobre a máquina radioativa de Mickey e Rivelino, a única máquina luminosa neste mundo desolado a rodar. As senhas decoradas se desfazem por um milésimo de segundo nesse eclipse total nocauteado no meio do estômago, ou mais claramente na barriga daquele certo Renato que já nasce mitológico. Enquanto isso, Assis faz explodir as flores grávidas de pólvora do infinito em Flávio, o Flamengo nunca mais empatou. Que abismo trágico de asa nesse céu se rasga? O FLA-FLU é o ópio dos deuses. E se não for pelo FLA-FLU, como crer na eternidade?

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[1] “E se não for pela poesia, como crer na eternidade?” (Alphonsus de Guimaraens Filho)

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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

"O poeta azul" por José Castello

E os tigres começaram a cravar suas garras em 2011! Hoje saiu a primeira resenha sobre meu segundo livro, escrita pelo crítico José Castello, no blog dele da globo.com. A resenha se chama "O poeta azul" (em referência ao filme Veludo Azul do David Lynch). Para quem quiser conferir aqui vai o link: http://oglobo.globo.com/blogs/literat...ura/
Para quem preferir, segue aqui a resenha na íntegra:

"O poeta Azul", por José Castello:

O contrário da eficácia não é a ineficácia, o contrário da eficácia é a delicadeza. Um esforço pode produzir o efeito desejado pode gerar bons resultados, mas pode, mesmo assim, ferir e aniquilar. O ato pode agir contra quem o praticou. Não é sábio chegar a um bom efeito, sem saber se ele nos serve. Antes de agir, contemplar. Arranco pensamento assim, fortes e sensíveis, da poesia de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, reunida em "Os tigres cravaram as garras no horizonte" (Editora Circuito).

Detenho-me, em particular, em um texto, chamado "A eficácia dos tigres". Pura poesia em prosa, o que, em si, já inverte valores. A eficácia dos tigres, mostra Augusto, é só beleza, é puro encantamento; não traz resultados, não gera recursos, nada produz. É inútil. Ele assinala: "Os tigres são contra o charme luminoso da objetividade e do equilíbrio, do rigor e da lucidez". Preferem a delicadeza do acidente, que é gratuito e não visa objeto algum. Na era pós-industrial, das marcas, luzes e griffes, das imagens feéricas e obrigações virtuais, Augusto escreve voltado para o inútil, que é indecifrável, obscuro e anônimo. Que se parece com uma pedra. Isso, em si, já é um ato de coragem.

Poetas como Augusto preferem escutar o acaso, submeter-se a ele, da forma mais ineficaz, mas também mais bela. Sua atitude (ao contrário do que pensarão os técnicos bem treinados e os controladores de eventos) não é insensata. Há uma ciência nesse submeter-se, há um objetivo que _ digamos _ é subjetivo. "Os tigres degolam os objetos úteis com extrema precisão". O que é útil para mim, pode ser um obstáculo para você. O que me serve, talvez não lhe sirva. Ao triturar os objetos, os tigres retomam a potência do singular. Eu sou isso, você é aquilo, e assim está bom, porque é assim que é.

Poemas não são solitários? Poetas, como Augusto, não acreditam em valores fixos, que marcham em bandos. Nada mais distante deles do que a ideia pronta, o programa de ação, o bem fazer. A contabilidade, o lucro-benefício evocado pelas atendentes telefônicas. A poesia está do lado da surpresa _ mas quanto às surpresas, nunca podemos contar com elas. Diz Augusto: "Os tigres vão cravar as garras no horizonte quando menos se esperar". Sabe que vive em um mundo vazio, mas isso, em vez de deprimi-lo, o instiga a ser. Lembra em outro poema, dedicado a Ana C.: "Caio aqui mesmo nessa auto-estrada/ nessa via sem heróis/ de plástico/ e sem bandeiras para hastear". A presença esquiva de Caio Fernando Abreu, transformado em verbo, é gritante. Diante do mundo que lhe oferecem, Augusto decide: "Vou dar minha orelha a um cego/ e caminhar pelo lado sombrio das calçadas".

A poesia de Augusto, como ele diz em outro poema, está "em obras". A suspeita da eficácia não é uma teimosia, uma rabugice juvenil, mas um ato de prudência. Quantos horrores os homens eficazes já fizeram! Quanto já se destruiu em nome de um mundo prático! Em outro de seus poemas, "o semáforo marcou azul", isso se torna escandaloso. O que um motorista deve fazer diante de um semáforo azul? Avançar? Parar? Esperar? Transportado para as esquinas urbanas, o azul se torna uma cor ineficaz. Os homens práticos dirão que ela está ali só para confundir. Augusto sabe que, ao contrário, ela é um pedido de contemplação. E assim faz sua poesia: como se contemplasse. Em um poema dedicado a Rainer Maria Rilke, ele resume: "Palavras são pedras e dias são mapas, poetas criam sua própria ilha em um oceano de céu".

domingo, 9 de janeiro de 2011

Os tigres cravaram as garras no horizonte (Augusto de Guimaraens Cavalcanti)



A eficácia dos tigres é vir ao mundo de onde menos se espera,
ou de um escuro tão fundo que nenhum blecaute sonha alcançar.
Os tigres necessitam da noite para se preencherem, suas garras apontam para a lua. Tudo que é noite traz seu prenúncio de tigre. Tudo que transborda traz sua ameaça de tigre. Tigres são sacralizáveis, pessoas não.

Tigres eternizados andam depois da tenebrosa. Tigres pisam livres pelos arredores dos prédios anônimos. Um tigre salta para dentro do tempo. Tigres não toleram sofredores. Tigres não carregam a poeira dos séculos. Os tigres reinventam a vida todos os dias.

Abrigar um tigre é como flutuar à deriva sem sair do lugar. É como se sentir desplumado, espectador sem espetáculo, desastrado sem desastre, computador sem dor alguma para computar. Enquanto sobrevivemos eles cavam o ar, prósperos e acessíveis. E quando os tigres invadem as cidades, será que são eles que se humanizam, ou na realidade é a humanidade que se tigrifica?

Os tigres são contra o charme luminoso da objetividade e do equilíbrio, do rigor e da lucidez. Os tigres são pelas estruturas vivas pingando sangue. Os tigres degolam os objetos úteis com tremenda precisão. Os tigres votam pela beleza e a delicadeza dos acidentes. Os tigres sabem que toda rua pende frágil como uma metáfora. Os tigres acreditam no sexo matemático das coisas. Os tigres irão cravar as garras no horizonte quando menos se esperar.

Quando os grandes prédios dormem. Nas sombras das estátuas; a incerteza é a religião dos tigres. Mas, o que foi feito das manchas solares? E quantos sonhos vermelhos sustentados por estas garras? Tigres desmoronados atravessam as galáxias. Este é o lugar onde os planetas nascem ao contrário. Raio sem trovão, precipício sem margem, náufrago sem destroços, âncora sem mar. Quando os grandes prédios dormem. Seguir um tigre é como estilhaçar espelhos e não morrer. Não vos admireis se tigres se deitarem na selva de vossos pés. Tigres perpétuos andam soltos pelas jaulas das ruas.