quinta-feira, 19 de outubro de 2017


Os poetas escrevem para os poetas. São os poetas que prestam homenagens ao seu próprio trabalho e todo esse mundo se parece bastante com qualquer outro dos tantos mundos especializados e herméticos que dividem a sociedade contemporânea. Os enxadristas consideram o xadrez como o ápice da criação humana, têm suas hierarquias, falam de Capablanca como os poetas falam de Mallarmé e, mutuamente, prestam-se todas as homenagens. Mas o xadrez é um jogo, enquanto que a poesia é algo mais sério, e aquilo que resulta simpático nos enxadristas, nos poetas é sinal de uma mesquinhez imperdoável. Os jogadores de xadrez não têm a pretensão a um papel tão universal, e o que se pode até lhes perdoar, nos poetas se torna imperdoável. Em consequência desse isolamento tudo incha e mesmo poetas medíocres inflam-se de modo apocalíptico, e probleminhas fúteis ganham uma importância estonteante. Somente uma cegueira voluntária pode explicar o inaudito simplismo com que se protegem os poetas (pessoas em geral não imbecis, mas ingênuas) quando se aborda a sua arte. A primeira consequência desse isolamento social dos poetas é que o mundo poético todo se infla, e mesmo os criadores medíocres alcançam dimensões apocalípticas e, pelo mesmo motivo, problemas de pouca importância ganham uma transcendência que assusta. [...]. O estilo se desumaniza; o poeta não toma como ponto de partida a sensibilidade do homem comum, mas a de outro poeta, uma sensibilidade ‘profissional’, e, entre os profissionais, se cria uma linguagem tão inacessível quanto a dos outros dialetos técnicos; e, subindo uns sobre os outros, formam uma pirâmide cuja ponta se perde no céu, enquanto nós ficamos embaixo um tanto confundidos. Mas o mais importante é que todos eles se tornam escravos de seu instrumento, porque essa forma é já tão rígida e precisa, sagrada e consagrada, que deixa de ser um meio de expressão; e podemos definir o poeta profissional como um ser que não pode expressar a si mesmo porque tem de expressar os versos. [...]. Os poetas ainda não compreenderam que não se pode falar de poesia em tom poético e por isso suas revistas estão cheias de poetizações sobre a poesia, quase sempre horripilantes por seu estéril malabarismo verbal. São a esses pecados mortais contra o estilo que os levam o temor que sentem da realidade e a necessidade de encontrar, a todo custo, uma afirmação do seu esmorecido prestígio. [...]. Não se dão conta de que se as escolas não ensinassem às crianças o culto dos poetas, em suas tristes e tão formais aulas de língua nacional, e se esse culto não se mantivesse por inércia entre os adultos, ninguém, além de uns poucos aficionados, se interessaria por eles. Não querem ver que a suposta admiração ao canto versificado é, em realidade, o resultado de muitos fatores como o interesse esportivo (porque assistimos a um recital poético do mesmo modo que a uma missa – sem compreendê-lo – e apenas cumprindo um ato de presença frente a um rito; e porque nos interessa a corrida dos poetas em direção à glória como nos interessam as corridas de cavalos); não, esse complicado processo da reação das multidões se reduz para eles à fórmula: ‘o verso encanta porque é belo...’. Para os poetas tudo não passa de: o cantor canta, e o ouvinte, encantado, ouve. [...]. Porém fiquem tranquilos: nada nunca mudará nos poetas. E não tenham a ilusão de que em face dessas forças coletivas que falsificam nossa percepção individual, eles vão mostrar um dia alguma vontade de resistência – para que ao menos a arte não fosse mentira e cerimonial, mas sim um encontro verdadeiro do homem com o homem. Não, esses monges preferem se ajoelhar. Monges? Até a religião morre no instante em que se transforma em rito. 


[Contra os poetas – Witold Gombrowicz, 1947].