domingo, 22 de junho de 2014

A mais ficcional das Copas (parte 1)

“O homem é o único animal que inventa dificuldades para si mesmo, sejam goleiros, zagueiros ou obstáculos” vaticinou o publicitário magnânimo José Zaragoza. Sim, ruas de fogo e ruas de protestos. Está dada a largada para a Copa do Mundo 2014. Este é um texto ficcional sobre a mais ficcional das Copas. Ao contrário do que muitos possam pensar, ficcional não quer dizer mentira ou falácia; apenas a ficção possui outro registro de fala mais próximo de uma mitológica do que de uma lógica. Estamos no registro dos mitos fabulares que saltam e explodem aos olhos de quem pensa que vê. Apaguem as luzes e liguem os holofotes, corações quebrados darão lugar ao maior espetáculo futebolístico do planeta.

Para muitos já não teve Copa, para outros vai ter Festa. O Brasil é o nosso grande abrigo abismo. De repente é aquela corrente fluente que ruma para afluentes fortuitos por onde surgem estádios futuristas brotando do chão. Tudo à la José Agrippino de Paula; nada mais, nada menos. Nos gramados virtuais da linguagem é que surge a felicidade feroz dos deuses léxicos que alimentam as chuvas dos dicionários. O futebol surge dos escombros de nossos desejos; cada drible pode inaugurar uma nova amplidão. Do complexo de vira-lata à pátria de chuteiras, caminhamos. Nós e nossos inconstantes dinamismos vitais. Transversalidades abertas pela escrita. Corpos se movimentam por mudanças. Até parece que todo o Brasil deu a mão, só que contra a FIFA.

O ritual de abertura da Copa realizado no Itaquerão foi, no mínimo, grotesco. A música “We are one” (cantada por Jennifer Lopez, chamada pelos americanos de “J.Lo”, Cláudia Milk e Pittbull) bem poderia se chamar “We are none”. O espetáculo performático foi dirigido por uma belga chamada Daphne Cornez sob a tutela do TVFIFA.

O que se podia ver televisionado era um horror show dos exotismos mais descartáveis: um globo terrestre gigante em formato de globo de pista de dança, um índio remando num caiaque imaginário sendo carregado por eunucos de azul, homens de perna de pau, homens jogando capoeira, homens vestidos de grama rodando em looping, homens travestidos de árvores, mulheres vestidas de flor a simbolizar a chuva desabrochando, avatares amazônicos, homens sentados trancafiados em bolas de futebol circundantes, bailarinas alucinógenas de rosa choque, homens pintados trajando azuis de kitschs mais bufantes.

 O genial Eugênio Ionesco, especialista na arte do absurdo no pior dos piores de seus dias de cólera não teria imaginado uma cena tão insossamente catastófrica. O franco romeno Ionesco, aliás, era especialista na arte de mostrar o quanto o ser humano é, em essência, impalpável e absurdo. O absurdo de Ionesco é um absurdo refinado em comparação com o show de abertura da Copa brasileira e todo o superfaturamento exultante referente aos estádios que foram costruídos para se adequarem ao padrão FIFA. O problema é que, se depender da FIFA e de seus padrões, estaremos todos fadados a termos nossos imaginários colonizados por tristes aldeias globais e, anestesiadamente, multiculturais. Ao que depender do mainstream FIFA o mundo terá esta noção pasteurizada de um país a carregar um exotismo a cada milésimo de segundo.

Provavelmente, nos próximos séculos, muitos escafandristas da História com H escreverão sobre a Copa que, teve e que não teve, no distante ano de 2014. Espero que tais escafandristas (mergulhadores de ruínas vivas) se lembrem das longas terras de índios ferozes sem Idílios, índios de terras faladas de estranhas divindades e brutas chuvas; índios de inconstantes almas selvagens que não se deixam escravizar.

[texto publicado inicialmente no site Ornitorrinco: ornitorrinco.net.br]www.ornitorrinco.net.br/2014/06/a-mais-ficcional-das-copas-parte-1.html