quarta-feira, 22 de junho de 2016


O absurdo é acreditar que podemos apreender a totalidade daquilo que nos constitui neste momento ou em qualquer momento, e intuí-lo como algo coerente, algo aceitável, se você prefere. Cada vez que entramos numa crise, o absurdo se torna total. É preciso compreender que a dialética somente pode arrumar os armários nos momentos de calma. Você sabe perfeitamente que no ponto culminante de uma crise procedemos sempre por impulso, ao contrário do previsível, praticando a barbaridade mais inesperada, e pode se dizer que, precisamente nesse momento, se verificará uma saturação da realidade; não lhe parece? A realidade precipita-se, mostra-se com toda a sua força e, então, a nossa única maneira de enfrentá-la consiste em renunciar à dialética (...) A razão só nos serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea. Todavia, essas crises são como demonstrações metafísicas, meu caro, um estado que, talvez, se não tivéssemos seguido pelo caminho da razão, seria o estado natural e corrente do pitecantropo ereto. (...). Será que já foi bem provado que os princípios lógicos se adaptam perfeitamente à nossa inteligência? Se existem povos capazes de sobreviver dentro de uma ordem mágica...(...). Somente os cegos de lógica e de boas maneiras podem parar diante de um Rembrandt e não sentir que ali há uma janela para outra coisa, um sinal. Isso é muito perigoso para a pintura, mas em troca...


Uma mesma situação e duas versões.... Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver, o coletor de folhas secas, em tanta coisa que haverá no ar e que estes olhos não veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos os lados haverá abajures, haverá folhas que não verei. E, assim, de feuille en aiguille, penso naqueles estados excepcionais que, por um instante, advinham-se as folhas e os abajures invisíveis, sentindo-os num ar que está fora do espaço. É muito simples, toda e qualquer exaltação ou depressão que me empurra para um estado propício a que chamarei de paravisões, ou seja, (o ruim é isso, dizê-lo) uma aptidão instantânea para sair, para repentinamente, de fora, apreender-me, ou de dentro, mas em outro plano, como se eu fosse alguém que está me olhando (melhor ainda – porque, na realidade, não me vejo –: como alguém que está me vivendo). (....).  Mas não há palavras para uma matéria entre palavra e visão pura, como um bloco de evidência. É impossível objetiva, explicar essa defectividade que apreendi no instante e que era uma clara ausência ou um claro erro ou uma clara insuficiência, mas sem saber de quê, quê. (...). Outra maneira de tentar dizê-lo: O defectivo se sente mais como uma pobreza intuitiva do que como uma mera falta de experiência. Na verdade, não me aflijo muito por não ter lido toda a obra de Jouhandeau, sinto no máximo a melancolia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas. (...). As vidas que terminam como os artigos literários de jornais e revistas, tão portentosas no primeiro plano e acabando numa cauda desfeita, lá pela página trinta e dois, entre anúncios de liquidação e tubos de dentifrício.

(Cortázar, Rayuela, 1963).



O absurdo é acreditar que podemos apreender a totalidade daquilo que nos constitui neste momento ou em qualquer momento, e intuí-lo como algo coerente, algo aceitável, se você prefere. Cada vez que entramos numa crise, o absurdo se torna total. É preciso compreender que a dialética somente pode arrumar os armários nos momentos de calma. Você sabe perfeitamente que no ponto culminante de uma crise procedemos sempre por impulso, ao contrário do previsível, praticando a barbaridade mais inesperada, e pode se dizer que, precisamente nesse momento, se verificará uma saturação da realidade; não lhe parece? A realidade precipita-se, mostra-se com toda a sua força e, então, a nossa única maneira de enfrentá-la consiste em renunciar à dialética (...) A razão só nos serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea. Todavia, essas crises são como demonstrações metafísicas, meu caro, um estado que, talvez, se não tivéssemos seguido pelo caminho da razão, seria o estado natural e corrente do pitecantropo ereto. (...). Será que já foi bem provado que os princípios lógicos se adaptam perfeitamente à nossa inteligência? Se existem povos capazes de sobreviver dentro de uma ordem mágica...(...). Somente os cegos de lógica e de boas maneiras podem parar diante de um Rembrandt e não sentir que ali há uma janela para outra coisa, um sinal. Isso é muito perigoso para a pintura, mas em troca... 

Uma mesma situação e duas versões.... Fico pensando em todas as folhas que serei eu a não ver, o coletor de folhas secas, em tanta coisa que haverá no ar e que estes olhos não veem, pobres morcegos de romances e cinemas e flores dissecadas. Por todos os lados haverá abajures, haverá folhas que não verei. E, assim, de feuille en aiguille, penso naqueles estados excepcionais que, por um instante, advinham-se as folhas e os abajures invisíveis, sentindo-os num ar que está fora do espaço. É muito simples, toda e qualquer exaltação ou depressão que me empurra para um estado propício a que chamarei de paravisões, ou seja, (o ruim é isso, dizê-lo) uma aptidão instantânea para sair, para repentinamente, de fora, apreender-me, ou de dentro, mas em outro plano, como se eu fosse alguém que está me olhando (melhor ainda – porque, na realidade, não me vejo –: como alguém que está me vivendo). (....).  Mas não há palavras para uma matéria entre palavra e visão pura, como um bloco de evidência. É impossível objetiva, explicar essa defectividade que apreendi no instante e que era uma clara ausência ou um claro erro ou uma clara insuficiência, mas sem saber de quê, quê. (...). Outra maneira de tentar dizê-lo: O defectivo se sente mais como uma pobreza intuitiva do que como uma mera falta de experiência. Na verdade, não me aflijo muito por não ter lido toda a obra de Jouhandeau, sinto no máximo a melancolia de uma vida demasiado curta para tantas bibliotecas.

Imagino o homem como uma simples ameba que estende pseudópodes para alcançar e envolver seu alimento. Existem pseudópodes compridos e curtos, movimentos, rodeios. Um dia, isso acaba por fixar-se (aquilo a que chamam de idade madura, o homem feito e direito). Por um lado, alcança longe, por outro nem vê um abajur a dois passos. E já não há nada a se fazer, como dizem os réus, a gente é vítima disto ou daquilo. Assim, dessa forma, um sujeito vai vivendo bastante convencido de que não lhe escapa nada de interessante, até que uma instantânea secreção atrás dele lhe mostra por um segundo, sem desgraçadamente lhe dar tempo para saber o quê, mostra-lhe o seu parcelado ser, os seus pseudópodes irregulares, a suspeita de que mais para lá, de onde agora vejo o ar limpo, ou, nesta indecisão, na encruzilhada da opção, eu mesmo, no resto da realidade que ignoro, estou me esperando inutilmente. Indivíduos como Goethe não devem ter tido muitas experiências desse tipo. Por aptidão ou decisão (o gênio é eleger-se genial e acertar), estão os pseudópodes estendidos ao máximo em todas as direções. Abrangem com um diâmetro uniforme, o seu limite é a sua pele projetada espiritualmente para uma imensa distância. Não parece que precisam desejar aquilo que começa (ou continua) mais além da sua enorme esfera. É por isso que são clássicos, meu chapa. Para a ameba uso nostro, o desconhecido aproxima-se por todos os lados. Posso saber muito ou viver muito num sentido determinado, mas então o outro ataca pelo lado das minhas carências e arranha-me a cabeça com a sua unha fria. O pior é que me arranha quando não está me picando e, na hora do comichão – quando eu desejaria conhecer –, tudo o que me rodeia encontra-se tão firma, tão situado, tão completo e maciço e etiquetado, que chego a pensar que estava sonhando, que estou bem assim, que me defendo bastante bem e que não devo me deixar levar pela imaginação. (...). As vidas que terminam como os artigos literários de jornais e revistas, tão portentosas no primeiro plano e acabando numa cauda desfeita, lá pela página trinta e dois, entre anúncios de liquidação e tubos de dentifrício.

(Cortázar, Rayuela, 1963).