quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Como conseguir falar sobre as mulheres búlgaras se, nem ao menos, sabemos a que horas do dia elas preferem existir? Tropeçamos como bêbados sobre a tela de nossas próprias percepções (e não paramos). Fomos expulsos do centro do Labirinto e estamos condenados a procurá-lo pelo mundo, como quem retirasse calmamente um livro do congelador. Neste ponto cego que é a vida, algumas búlgaras, ou possivelmente húngaras, nos chegam aqui mais oblíquas do que nunca para tentar nos acalmar. São elas: Nina Dobreva, Brigitta Bulgari, Zsa Zsa Gabor, Annina Brandel, e até mesmo a diva, deusa global, cantora, apresentadora, diretora, empresária, produtora cinematográfica e musical, a encantadora Cherilyn Sarkisian provinda da Armênia – país sem costa marítima – mais conhecida pela alcunha acanhada de CHER. Cada uma delas troca gesticulações pelo quadrante de um despertador, que soa sessenta segundos, cada minuto. Neste nó desvairado de desenganos tudo pode mudar de repente para quem observa o mistério búlgaro desde os primeiros contatos até as definitivas trocas de olhares.

Uma búlgara – quando existe – é sempre questionadora, conseguindo até se debater por meses a fio sobre conceitos que a humanidade trabalha há séculos. Aqui, no parágrafo ZERO da escrita, os limites palpáveis deste país talvez sejam determinados como consequência da permanência de uma diáspora de nenhumidade. Seria quase impensável ver uma búlgara arruinada em seus próprios nervos; muito excepcionalmente ela te responderá com alguma nitidez. Isto pode ser comprovado na simpática entrevista da atriz hollywoodiana Nina Dobreva, titulada “Tenho orgulho de ser búlgara!”. Assim a aprendiz de vampira Dobreva cita sua adorada terra: “Meu lugar preferido lá é o Mar Negro, mas como tenho trabalhado durante os verões, não vou lá faz anos! Todos que me conhecem sabem que sou Búlgara e que tenho orgulho disso. Eu falo Búlgaro com a minha família, e quando meus amigos me ouvem falando, dizem: Nossa, você fala outra língua, isso é muito legal!”.

Os fios búlgaros dos cabelos das búlgaras podem facilmente sufocar quem por eles resolver se emaranhar. A atriz Joy Page, por exemplo, que interpretou a mulher búlgara recém-casada Annina Brandel no romance Casablanca (1942) – nascendo intermitentemente para o cinema – morreu em Los Angeles, cidade dos anjos norte-americanos, aos 83 anos, mas antes disso enrolou e entrelaçou muitos homens antes de se deitar para sempre em berço esplêndido. Ela só desejava que os rios de Sófia a levassem até os mares mais mortos que pudessem existir. Já a atriz Zsa Zsa Gabor, protagonista de Moulin Rouge, com sua “origem” húngara ou possivelmente búlgara, completará 94 anos no dia 6 de fevereiro, com seus belos coágulos de carne expostos miraculosamente ao sol. –“Tudo como era dantes no quartel de Abrantes, muita estrela pra pouca constelação. Depois de nós, só o dilúvio!”, é o que dizem os professores doutores Velichko Velikov e Nikola Orloev, que nos contam sobre outra ocorrência enigmática chamada Brigitta Bulgari. Agora vamos aos “fatos”.

Um cemitério na cidade movediça de Podvodka – situada na fronteira com a pálida menina chamada Grécia – quer demolir o túmulo da voluptuosa atriz Brigitta Bulgari, conhecida na indústria pornográfica como Sexy Wosnitza. O motivo: o túmulo seria muito sexy e estaria tumultuando o lugar. Curiosos querem ver a construção, enquanto visitantes de parentes mortos se sentem ofendidos. Brigitta Bulgari “morreu” em janeiro passado, aos 23 anos, após complicações em uma cirurgia para aumentar o silicone nos seios de 750 para 900 ml. O túmulo da atriz, construído por seu viúvo, Ivan Wosnitza, custou cerca de U$$ 40 mil e inclui fotos dela, além da estátua de um anjo. Diante da repercussão, o viúvo planeja contratar seguranças particulares para garantir que o túmulo não seja demolido. “Ela era uma mulher bonita, não entendo como isso pode ser ofensivo”, ele disse a um jornal local. Ela era uma estrela premiada, modelo, ex-Big Brother, e já tinha sido hospitalizada em 2009 durante uma tentativa de bater o recorde mundial de sexo oral em 24 horas. A “atriz” pretendia conversar com 200 homens, mas desistiu após o número 75 por se sentir levemente indisposta.

Em Sófia qualquer beco ou cruzamento sombrio de prédios atados por alfinetes pode ser um raio de sol. Se existir a Bulgária, pode ser hoje o dia de seus fios desencapados, agora a hora de palitar os dentes com milhares de volts. Vestidos de nudez diariamente os habitantes de Sófia abotoam suas camisas que pesam feito chumbo e saem de seus prédios (dinossauros de cimento) rumo ao que chamam de avenida pulsante; esta é uma de suas maiores aventuras: Aceitar e esquadrinhar o congestionamento de todo santo e venerável dia, incansável feito uma dívida que não tem hora para terminar. Mas até mesmo que a Bulgária não “exista”, mesmo assim, os jornais sairão quentinhos de qualquer banca de jornal. Os profetas do acontecido sempre hão de triunfar.

Do lado de fora do aquário, o passado de Sófia vai se escrevendo nos ângulos de suas autopistas e no arranhar de suas janelas. De alguma maneira Sófia permanecerá com suas lendas sobre sua origem frágil. Geralmente cada canção tradicional deste país é entoada em ritmo único e bailada ao ritmo seco dos gritos que se desdobram pelas suas fronteiras; não necessariamente humanas, mas invariavelmente búlgaras. Sófia rascunhada nos rasgos rasgados das brechas inundadas, nos cantos das fendas, nos rápidos restabelecimentos das suas máquinas de poeira; ali onde Sófia constrói o futuro sobre sua tradição, ao redor do famoso “Vale das Lágrimas dos Futuros Velhos”; ali existem elevações e planícies aéreas que circundam toda a costa do Mar Morto e de seu principal rio, o Danúbio, ao norte. Fora dos aquários do que já morreu e se esqueceu de deitar; o futuro dura muito tempo.

Um filósofo, supostamente búlgaro, opositor dos mais aclamados bulgarólogos, nos disse certa vez que tudo o que jaz no inferno das bibliotecas viria a lume na alta cidade crepuscular de Sófia. No escuro da entrega as flores também submergiriam deste vazio. Muitos são os que defendem a tese que Sófia é uma cidade palpável demais para ser real. Suas pavimentações se assemelhariam a meteoros e despenhadeiros, suas profundidades de tão planas carregariam uma cidade portátil. Seriam seus edifícios que sustentariam Sófia, como se esta dependesse (segundo a certeza de alguns ilustres astrobúlgaros) de pontes para se sustentar no espaço, pairando com suas áreas abertas nas linhas de uma levitação por onde as calçadas mais imediatas não conseguiriam alcançar.

Nos cenários de Sófia os mendicantes são as mais belas peças de decoração da maquete da cidade, ficam fabulosos no contraste plástico da pele com o asfalto, assim como púcaras ficam também as crianças búlgaras abandonadas portando púcaros, se abrigando nas marquises de deteriorados viadutos que talvez nem existam mais.

Nas cenas mais corriqueiras de Sófia – cidade deflorada – suas formas de vida são as mais modernas possíveis. Fabulosa é a epiderme das suas alamedas com seus bancos e estátuas reluzindo durante as tardes primaveris em que se é fácil perceber as diferenças entre os seus dois sóis – noturnos e diurnos. Lá onde toda forma de luz é um conflito, vagalumes são os poetas estudando o espaço. Cineastas se derretem pelos roteiros perturbadores que vão sendo construídos pelo pôr do sol do alto de Sófia. Anunciam os doutores que ou os búlgaros não existem, ou então somos nós os taciturnos. Pode ser que a hipótese mais verdadeira seja a outra: são eles que existem, nós não. Ou são os búlgaros inexistentes, ou os nãos nascidos somos nós. Talvez os médicos e os neurocirurgiões continuem a afirmar que o “estado búlgaro” não passe de uma tamanha inquietação, uma febre, uma suspensão momentânea da “razão”. Não dê ouvidos para eles. Escutar o que “eles” falam seria como pousar em cidades que nunca sairiam do papel. Como diria meu tetravô: “não me busqueis no texto, eu fui sonhado”.

[De "Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho", 2012, 7Letras]


Já dizia 1 velho ditado búlgaro: "O homem que acha a sua pátria agradável não passa de um jovem principiante; aquele para quem todo solo é como o seu próprio já está forte; mas só é exato aquele para quem o mundo inteiro é como um país estrangeiro".
Não podemos mais invocar, para estender uma ponte entre continentes que se afastam tanto uns dos outros; quem constrói a ponte não conhece o lado de lá. O nadador não tem outra saída senão construir uma balsa com os ossos destes deuses e sobreviver. Na verdade, a linha que separa os países abstratos dos países ditos reais só pode ser traçado no útero de uma teoria selvagem, mas talvez este não seja um romance para as carpideiras de plantão e nem muito menos um romance refém da lógica dos territórios: os mapas também mentem, principalmente eles. É aqui onde um poeta exprimirá seu desejo de ser um rio, não um rio fechado em duas margens, mas um rio com seus cavalos selvagens. Como se suas ilhas se transformassem em arquipélagos e depois em continentes, aqui nos chega Campos de Carvalho a bradar: "Até um relógio parado tem razão duas vezes ao dia. Eu quero a liberdade tátil de uma criança".
É aqui onde um poeta exprimirá seu desejo de ser um rio, não um rio fechado em duas margens, mas um rio com seus cavalos mais selvagens. A solidão é um cartão postal. Quanto mais se vive, menos se morre.
Não podemos mais invocar, para estender uma ponte entre continentes que se afastam um do outro; quem constrói a ponte não conhece o lado de lá. Vivemos uma mudança permanente que dissolve os deuses como se fossem bancos de areia. O nadador não tem outra saída senão construir uma balsa com os ossos destes deuses e sobreviver. Na verdade, a linha que separa os países abstratos dos países ditos reais só pode ser traçado no útero de uma teoria, mas talvez este não seja um romance para as carpideiras de plantão e nem muito menos um romance refém da lógica dos territórios: os mapas também mentem. O homem que acha a sua pátria agradável não passa de um jovem principiante; aquele para quem todo solo é como o seu próprio já está forte; mas só é exato aquele para quem o mundo inteiro é como um país estrangeiro. Quanto mais se vive, menos se morre.
("Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho", 2012, 7Letras)

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Há exatos 3 anos a + inexata Bulgária

Foi Radamés Stepanovicinsky (o bulgarólogo mais aclamado do século XX) quem escreveu sobre este meu primeiro romance "Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho" (2012, 7Letras): "Sob uma chuva imóvel, farejando as mais diversas pistas com nariz sutil, o narrador deste insólito romance segue rumo a uma Bulgária inventada ou literária - e por isso real - em um lugar montado a partir de colagens, nomes e palavras de teor e sonoridades ímpares, num diálogo que parte das experimentações do humor do também ímpar escritor Campos de Carvalho para chegar - renovado e revivido - ao leitor mais que contemporâneo". Muito mais do que seu sobrevivente, o que mais interessava a Campos de Carvalho era ser contemporâneo de si próprio, e não apenas meramente sobreviver; até o ponto em que poderia ser ele o primeiro astronauta realmente lunático a chegar finalmente na Lua e embaralhar sua geografia. Antes que o homem pensasse em pisar na Lua, Campos de Carvalho já estava tentando chegar à Bulgária. Considerava que somente com esta busca poderia romper a dentadas a barreira do impossível. Pouco importava a Campos de Carvalho que o tal púcaro búlgaro (vaso de asas quebradas) pudesse ser um monstro aos olhos dos chamados lógicos. Sem Bulgária alguma para procurar talvez a vida lhe escorregasse em capa escorregadia, sem ensopar e encharcar suas ideias e imagens. Para navegar um país tão escorregadio seria preciso muito mais do que uma capa de chuva. Também Campos de Carvalho possui os dentes do dragão.

E como dizia Campos de Carvalho: "Inútil fugir de mim. Fugi do ventre e não adiantou de nada, andei como sonâmbulo por terras e mares estranhos, acabei caindo nesta ilha, neste quarto, com esta luz ofuscando-me a escuridão: sou eu a lâmpada, não consigo apagar-me: o vaga-lume depois de morto continua aceso – também as estrelas. Esta respiração não pode ser só minha, é a de todos os que fui e sou desde que “nasci”. Cada um carrega o que tem e é por ele carregado, o espelho dos outros nos deixa na mesma perplexidade que o nosso, em vão lhes copiamos os gestos e a voz: nossos sonhos são outros. O único defeito de Paris é ter parisienses, mas penso que isso acontece com os habitantes de todas as cidades. O mundo de hoje é tão de cabeça para baixo, que só se pondo de pernas para ar você consegue pisar no chão e olhar o adversário nos olhos, medi-lo em sua insignificância, a ele e seus cânones – e paideumas. Me encontro agora na esquina do boulevard Saint Michel com a Barata Ribeiro. O Rio de Janeiro tem, de parisiense, isso de que as pessoas estão sempre procurando ver algo ou mesmo algas – e, quando é o próprio trânsito que deixa de transitar, aí então não há rei nem valete que nos valha e o melhor é, como no caso do poeta, ouvir um tango argentino. O boulevard Saint Michel, para quem não sabe, vai dar no Sena e na catedral Notre Dame – o que possibilita aos desesperados, em caso extremo, suicidar-se ou cair de vez. Já a rua Santa Clara, por seu lado, para os que a conhecem, é justamente aquilo que dela sempre se espera, e qualquer Volks ou bicicleta que ali bata às dez da noite geralmente repercute em todos os quadrantes do mundo. Eles são metidos a plural e nada têm de singularidade. A deusa Razão inventada pela Revolução Francesa deu no que deu. Sonho o livro inatingível (todos nós sonhamos) que eu mesmo venha a compreender a totalidade só muitos anos depois, e que me escape justamente porque ainda não estou preparado para entendê-lo mas apenas escrevê-lo. Você, que também busca esse livro, sabe que não jogo com as palavras e sim apenas com a sorte (un coupe de dês...) e que já o simples fato de buscá-lo representa um deslumbramento, a exemplo do que ocorre com o alquimista diante da Grande Obra, ao mesmo tempo dentro e tão longe dela. Vim aqui ver, e não vi, o que só podia ver dentro de mim e não em qualquer geografia ou mapa: a face oculta do sol e de todas as luas, o outro lado do espelho e o rio subterrâneo que corre sob cada rio. Não sou quadro para viver preso numa moldura e dependurado na parede. E que são as fronteiras de uma cidade, eu pergunto, senão os limites estreitos de uma moldura mais ou menos de luxo na qual pretendem sufocar a imensidão de minha alma imortal, como diria um grande poeta ou qualquer seminarista de férias em uma tarde de primavera?".
ctot

sábado, 17 de outubro de 2015

Não tinha túnel. O lado de dentro refletia o lado de fora. Nadando assim nos acúmulos de azuis das piscinas mais brutais (alguém esperava o tiroteio passar). Delírios oceânicos germinavam dos teus óculos: pequenas máquinas de enxergar. Livros brotavam do seu peito. Sim, a cidade era dos arranha-céus. Sim, mas a felicidade não podia ser medida como uma mera expectativa de pavimentação e argamassa.
Em cada edifício alguém enlouquecia e tentava arranhar o céu. 
A cidade era daqueles que arranhavam os céus para depois
incendiar a própria noção de céu,
como os que arrancam as luas de isopor e depois desfolham
os calendários,
como os vulcões presos dentro das lombadas dos dicionários,
como os encaixes que se desencaixam e permanecem belíssimos;
Os incêndios nunca corresponderiam às destruições
Sim, a cidade era dos arranha-céus, daqueles que cravavam suas garras
e depois bebiam tranquilamente
seus refrigerantes de petróleo.
Sim, mas mesmo assim flutuavam os pássaros de Hitchcock
Mesmo assim planetas entravam em fusão
Mesmo assim sobrenadavam os corvos de Allan Poe
Mesmo assim bibliotecas brotavam das árvores
Sim, a cidade era a cidade dos inocentes, daqueles que queriam as profundezas sem imersão,
a arte de mergulhar no raso,
daqueles que dançavam sem êxtases ou possessões,
dos iluminados no céu escuro
Sim, sim, a cidade pertencia àqueles que fotografavam tudo,
daqueles que sabiam que o susto era a alma do negócio.
Dos que arranhavam os céus com as unhas e depois saíam
distraídos para caminhar....
Sim, mas mesmo assim permaneceriam os venenos de veludo,
de beijos sem nomes, amores sem sobrenomes,
agendas sem datas, luas sem GPS, os olhos espirrando mel
sobre as horas mortas
da noite anterior. Ainda assim nos permaneciam as asas crescendo durante a noite,
enquanto os inocentes dormiam;
asas que iam inflando como giletes que escorregavam de dentro de nossas peles até incharem tanto
que logo arrebentavam
de manhã e nos deixavam aqui mesmo tontos caídos e atordoados
no continente do chão.
Nascíamos, também.


(Do livro inédito Máquina de fazer Mar)

sábado, 10 de outubro de 2015

Como o centro da frase é o silêncio e o centro deste silêncio
é a nascente da frase começo a pensar em tudo de vários modos
o modo da idade que aqui se compara a um mapa arroteado
por um vergão de ouro
ou o medo que se aproxima da nossa delicadeza
e que tratamos com o poder da nossa delicadeza ―
temos que entrar na zoologia fabulosa com um talento bastante fabuloso
pois também somos a vítima da nossa vítima ―
e ofereço à perscrutação apenas uma frase com buracos
assinalando uma cabeça escritora
assim era ― dizia a própria cabeça ― um queijo suíço
a fermentar como arcturus fermenta na treva celeste
e apura os volumes e a qualidade dos volumes
da luz ―
desde que a atenção criou nas coisas o seu movimento
as formas ficaram sob a ameaça do seu mesmo
movimento ―
o mais extraordinário dos nomes sempre esbarrou
consigo mesmo
com o poder extraordinário de ser dito ―
qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez
é lenta ― basta olhar para a paisagem da escrita já antes
quando começa a abater-se pelo seu peso e o espírito
da sua culpa ―
porque uma frase trabalha na sua culpa como a paisagem
trabalha na sua estação ―
o merecimento a ver quem a ele chega primeiro
ao buraco do coração ― ver ou ser visto ―
ao buraco que transpira no meio do ouro ―
se é ele o ouro ou se o ouro está em volta tremendo
como um nó vivo implantado em cheio na madeira ―
e a única meditação moderna é sobre o nó
absorvendo a madeira toda ― uma espécie de precipitação
convulsa da matéria para o seu abismo próprio ―
e sobre a tábua despida incorporando cada nó que fica
a palpitar com a força do tecido inteiro
da tábua
e lançando na tábua a sua energia mergulhada
de nó ―
porque em toda palavra está o silêncio dessa palavra
e cada silêncio fulgura no centro da ameaça
da sua palavra ―
como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro
                                                e
cumpre também falar do desafio do espetáculo ― o teatro
dentro do teatro ―
o travesti shakespeareano na dupla zona da forma e da inclinação
para o sentido enigmático ―
a rapariga vestida de rapaz interpretando a função oblíqua de rapariga
perante o rapaz vestido de rapariga interpretando
a misteriosa verdade corporal de rapaz ―
o que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta
através das armadilhas ―
porque a vertigem é um acesso às últimas possibilidades
de equilíbrio
entre a verdade que é outra e a outra verdade que é
uma verdade de uma nova verdade continuamente ―
outra regra do espetáculo é inventar
a forma seguinte do enigma de modo a que a frase visível
fique junto ao rapto ―
empurrar o rosto para as trevas ― ou retirar da dança
os pés e ficar à luz uma espécie de imobilidade ―
o brilho do rosto já sem o rosto mas com toda a energia
e todo o impulso de um rosto ser o rosto teatral ―
porque também a máscara era a abolição de uma falsa liberdade
do rosto ―
e então não era o rosto que estava mas
a eternidade de um teorema ―
a abdicação das formas que morrem de si mesmas ―
um salto para o centro ―
e as presenças muito brancas enchem a cena
apenas de brancura
central implantada cega na paragem do tempo ―
perder o nexo que liga as coisas porque há só uma coisa
dada por indícios ―
uma centelha um sopro um vestígio um apelo uma voz ―
que a metáfora seja atendida como alusão à metáfora
da metáfora
como cada coisa é a metáfora de cada coisa ―
e o sistema dos símbolos se represente como o símbolo
possível de um sistema
de símbolos do símbolo que é o mundo ―
o mundo apenas como a nossa paixão posta diante de si ―
a paixão da paixão ―
nenhuma frase é dona de si mesma ―
e então o teatro que apresenta a frase não é dono de nada
mas só do recurso
de ganhar uma regra e recusar a regra ganha ―
assim como a voz abdica no silêncio e o silêncio
abdica na voz para dizer apenas que é uma forma de silêncio ―
um gênio animal inexplicável como uma queda no escuro ―
enquanto as vozes são cada vez mais astrológicas e loucas ―
e desaparecemos no silêncio levando com uma grande
leveza a queimadura inteira na cabeça

(Herberto Helder ou O poema contínuo)