terça-feira, 1 de setembro de 2020

Like a slow burn

Quando um deus morre, a multidão se pergunta:

para que medir a cidade com passos?

Os pés não têm memórias?


Distraidamente um homem sem sombras carrega

suas paisagens remendadas no bolso, as mastigará

nas primeiras horas de um janeiro qualquer


Homem atravessado por um céu sem nuvens,

levará na sacola toda uma coleção de paisagens subtraídas


Nenhum dia será belo como o sol que se apagará

nos horizontes dos aeroportos e em seguida virá se inflamar

na pista de pouso dos corredores e dos prédios


No dia em que o teto cair qual e tal a maçã de Newton,

aí sim brilharão com a maior das intensidades translúcidas

os corpos translúdicos e seus corações cicatrizados


Um dia, quando este homem estiver dourado de cansaço,

tomará tanto sol que ficará todo iluminado por dentro

e então verá o outro ocidente de haikais

que os barcos vêm trazendo


Aí, então, o balé improvável dos astronautas

será composto por formas habitáveis e

pelo sangue coagulado de continentes vicários

– o pós espanto da pós poesia do pós contemporâneo


E os deuses não mais se cansarão de escrever o real


O poeta não só enxerga, como vê a construção

junto de quem constrói, tudo na mais maré mais alta

de oceanos sem margens


Tudo pela clausura móvel da pele,

pelo reflexo de um âmbar, para que a paisagem escape

de sua própria escravidão


Pelo rigor na experimentação e pela experimentação no rigor;

construções em ruínas de construções

– like a slow burn


O chão sustenta o tapete, que fixa

a cadeira, que sustenta os pés

Os dicionários são incômodos,

os nomes provisórios


O voo de um pássaro não se prende a moldura alguma


_ quase nunca o calendário cardíaco corresponde ao calendário solar. o corpo é a medida da concretude das coisas, mas, por outro lado, é na mente que as ideias fluem; daí quem sabe, algumas ilusões geográficas _


É preciso nascer para provocar cortes nas escrituras do passado

Nascer junto com os mortos, escrever e ser escrito

Um dia, a localização poética ainda haverá de ampliar

a localização geográfica





["Slow burn": Máquina de fazer mar (2016, 7Letras, AGC)]