quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Os cem sóis de Maiakóvski

Já que nos últimos dias têm sido evocados poemas de Maiakóvski, aqui o meu preferido dele; os cem sóis de Maiakóvski: "Brilhar para sempre, / brilhar como um farol, / brilhar com brilho eterno, / gente é para brilhar, / que tudo mais vá pro inferno, / este é o meu slogan / e o do sol."


A tarde ardia em cem sóis
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava,
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.

E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato
E de manhã outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto começou a irritar-me
terrivelmente.

Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
¿Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!
E grito ao sol:
¿Parasita!
Você aí, a flanar pelos ares,
e eu aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!

E grito ao sol:
¿Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso de paxá
você baixar em casa
para um chá?
Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostrar medo,
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
¿Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!
Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar, eu lhe mostro
o samovar:

¿Pois bem,
sente-se, astro!
Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo pouco a pouco
a palestrar com o astro.

Falo disso e daquilo,
como me cansa a Rosta,
etc.
E o sol:
¿Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!¿

Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.

E o sol, por fim:
¿Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu com seus versos.

¿O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno;
Gente é pra brilhar.
Que tudo o mais vá pro inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.


("A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha". Poema escrito em 1920, ano da maior medição de calor na Rússia em todo século XX, ao que o poeta descobriu que seu lema era o mesmo do sol; ao que o poeta convida o sol para beber 1 chá.) [Tradução: Augusto de Campos]

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