sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Da Eterna

Se a solenidade, a postura douta, as estátuas e as ruas com sobrenomes fossem proporcionadas ao pensar profundo, quão pouco dessa estofa haveria: o viver não precisaria de tanta paciência nem abundaria tanta tentação de uma vileza em troca de celebridade. Por enquanto, a profusão de estátuas, aniversários, volumes de história, sobrenomes de esquina e escritos da segura virtude fazem muita suspeita essa sociedade da perdoável pobre gente que somos todos; os sobressalta notar tanto trabalho dos homens por parecerem bons, numa civilização tão apaixonada pelas fechaduras Yale e pelos bons modos, armadilha para adoecer vítimas. Cidades de melhor gosto teriam ruas chamadas de Chuva do Despertar, o Caminho Orvalho cruzado pela avenida do “Homem Não Idêntico”. (...). Cumpriu-se a beleza da não História; foram suprimidas as homenagens a capitães, generais, advogados, governadores, nas quais não se recorda o nome de nenhuma magnífica obra desnorteada de vida; (...) Praças e parques com os nomes das máximas vivências humanas, sem sobrenomes; (…). Foram deportadas todas as estátuas que enlutam as praças, e seu lugar foi ocupado pelas melhores flores; apenas se substituiu a de José de San Martín por uma simbolização do “Dar e Partir”. Enfim, na cidade presentista algo fez o tempo não transcorrente, como a história, e sim um Presente fluído, com memória só do que volta cotidianamente a ser, não do que não se repete, como os aniversários. Por isso o almanaque da cidade tem 365 dias de um só nome: “Hoje”, e a avenida principal se chama também “Hoje”. (...) A cidade se deslocou sobre seu eixo girando seu perímetro alguns centímetros. (...) De volta à estância “O Romance”, davam-se os bons-dias. Mas a Eterna voltou à noite para Buenos Aires, e eu sei para quê. Para atribuir às duas Praças Centrais os nomes da “Cidade sem Morte” e “Dos Homens Não Idênticos”; essas denominações se completavam na ligação de uma Praça com a outra. (O não idêntico está isento de morte.)
(Macedonio Fernández, Museu do romance da Eterna, 1967)


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