A pedra abre a cauda de ouro incessante, \ só a água fala nos
buracos. \\ São palavras pronunciadas com medo de pousar [...] Primaveras
extasiadas, espaços negros, flores desmedidas \ – todos os dias debalde
repelimos os mortos. [...]. Tocamo-nos todos como as árvores de uma floresta \
no interior da terra. Somos \ um reflexo dos mortos, o mundo \ não é real. Para
poder com isto e não morrer de espanto \ – as palavras, palavras. [...]. Há
palavras que é preciso afundar \ logo noutras palavras. \ Quando falo está ali
outra coisa quando \ me calo. [...]. Ouve-se a dor das árvores. Sente-se a dor
\ dos seres \ vegetativos, \ ao terem de apressar a sua \ vida lenta. Pôs a
caminho \ um remexer de treva. E não tardam \ as dispersas primaveras, \ uma
atrás da outra. [...]. A pedra espera ainda \ dar flor, o som \ tem um peso, há
almas embrionárias. [...]. É preciso curar os mortos pela força / magnética das
palavras [...]. Por trás da imobilidade, horas verdes \ caem de espaço a espaço
\ – gotas de água no fundo de um subterrâneo. \ E em volta um círculo de
montanhas atentas. \ No alto da noite côncava e branca, \ uma camélia gelada. E
metem as árvores \ para o interior de um diamante polido [...]. E o céu.
Basta-nos o nome para lidar \ com ele. \ O céu. \ Uma nódoa que se entranha
noutra nódoa. \ – A água tem um som. \\ Mar inesgotável que desliza no
silêncio. \\ Ponho o ouvido à escuta de encontro ao mundo: \ ouço-me para
dentro. [...]. Catástrofes boreais, estrelas no caos / Há dias em que o céu e o
inferno esperam / e desesperam. [...]. Nesta primavera há duas primaveras / e –
perfume, ferocidade. / Turbilhão azul sem nome. / O sonho irrompe como hastes
de cactos, \ pélago desordenado. [...]. Dentro de cada ser ressurgem os mortos.
/ A noite com outras noites em cima. [...]. Estamos como sons, peixes /
repercutidos. O homem rói dentro do homem, / criam-se olhos que veem na obscuridade.
/ Deitamos flor pelo lado de dentro. [...]. Sob o fluido elétrico, / todo ano
as árvores se desentranham em flor. / Pegou-lhes sonho também, / é um
desbarato, uma profusão que as devora. / A alma é exterior, envolve e impregna
o corpo. \ Na pedra, a alma da pedra. [...]. A primavera toca mais fundo na
loucura, / revolve os vivos e os mortos. / – Todos deitam flor. // Cai o
inverno dentro da primavera, / engrandece-a: tudo se entreabre em vertigem \
azul [...]. O que estava por baixo está agora por cima. / A flor esbraseada das
noites sobre noites de concentração [...]. As bocas falam por muitas bocas.
[...]. Todas as árvores se consomem em sonho. / São construções vivas, fixadas
no silêncio, / suspensas na luz. / Ah, cinematografar a morte de uma flor, uma
tábua atônita, / um nome transfigurado. [...]. Como se as palavras
gesticulassem para dentro, / como uma primavera escorre morte. [...]. A pedra
abre a cauda de ouro incessante, / somos palavras, / peixes repercutidos. / Só
a água fala nos buracos. [...]. É uma inteligência exterior // É o diálogo dos
dias e das noites, / entre as fazendas petrificadas e os grandes
desmoronamentos das estrelas. / Mais braços na monstruosa árvore do sonho, /
cores ininterruptas, a sombra da sombra. [...]. – pergunto, quem ama até perder
o nome? [...]. Os astros mudam de cor \ de queda em queda. \ É preciso \ criar
palavras, sons, palavras vivas, / obscuras, terríveis. / – Ouves os gritos dos
mortos? // É preciso matar os mortos, / outra vez, / os mortos.
(Herberto Helder, 1966).
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