Como o centro da frase é o silêncio e
o centro deste silêncio
é a nascente da frase começo a pensar
em tudo de vários modos ―
o modo da idade que aqui se compara a
um mapa arroteado
por um vergão de ouro
ou o medo que se aproxima da nossa
delicadeza
e que tratamos com o poder da nossa
delicadeza ―
temos que entrar na zoologia fabulosa
com um talento bastante fabuloso
pois também somos a vítima da nossa
vítima ―
e ofereço à perscrutação apenas uma
frase com buracos
assinalando uma cabeça escritora
assim era ― dizia a própria cabeça ―
um queijo suíço
a fermentar como arcturus fermenta na
treva celeste
e apura os volumes e a qualidade dos
volumes
da luz ―
desde que a atenção criou nas coisas
o seu movimento
as formas ficaram sob a ameaça do seu
mesmo
movimento ―
o mais extraordinário dos nomes
sempre esbarrou
consigo mesmo
com o poder extraordinário de ser
dito ―
qualquer vagar é de muita pressa e
toda a rapidez
é lenta ― basta olhar para a paisagem
da escrita já antes
quando começa a abater-se pelo seu peso
e o espírito
da sua culpa ―
porque uma frase trabalha na sua
culpa como a paisagem
trabalha na sua estação ―
o merecimento a ver quem a ele chega
primeiro
ao buraco do coração ― ver ou ser
visto ―
ao buraco que transpira no meio do
ouro ―
se é ele o ouro ou se o ouro está em
volta tremendo
como um nó vivo implantado em cheio
na madeira ―
e a única meditação moderna é sobre o
nó
absorvendo a madeira toda ― uma
espécie de precipitação
convulsa da matéria para o seu abismo
próprio ―
e sobre a tábua despida incorporando
cada nó que fica
a palpitar com a força do tecido
inteiro
da tábua
e lançando na tábua a sua energia
mergulhada
de nó ―
porque em toda palavra está o
silêncio dessa palavra
e cada silêncio fulgura no centro da
ameaça
da sua palavra ―
como um buraco dentro de um buraco no
ouro dentro do ouro
e
cumpre também falar do desafio do
espetáculo ― o teatro
dentro do teatro ―
o travesti shakespeareano na dupla
zona da forma e da inclinação
para o sentido enigmático ―
a rapariga vestida de rapaz
interpretando a função oblíqua de rapariga
perante o rapaz vestido de rapariga
interpretando
a misteriosa verdade corporal de
rapaz ―
o que se pede à cena é apenas o
delírio de uma coisa exacta
através das armadilhas ―
porque a vertigem é um acesso às
últimas possibilidades
de equilíbrio
entre a verdade que é outra e a outra
verdade que é
uma verdade de uma nova verdade
continuamente ―
outra regra do espetáculo é inventar
a forma seguinte do enigma de modo a
que a frase visível
fique junto ao rapto ―
empurrar o rosto para as trevas ― ou
retirar da dança
os pés e ficar à luz uma espécie de
imobilidade ―
o brilho do rosto já sem o rosto mas
com toda a energia
e todo o impulso de um rosto ser o
rosto teatral ―
porque também a máscara era a
abolição de uma falsa liberdade
do rosto ―
e então não era o rosto que estava
mas
a eternidade de um teorema ―
a abdicação das formas que morrem de
si mesmas ―
um salto para o centro ―
e as presenças muito brancas enchem a
cena
apenas de brancura
central implantada cega na paragem do
tempo ―
perder o nexo que liga as coisas
porque há só uma coisa
dada por indícios ―
uma centelha um sopro um vestígio um
apelo uma voz ―
que a metáfora seja atendida como
alusão à metáfora
da metáfora
como cada coisa é a metáfora de cada
coisa ―
e o sistema dos símbolos se
represente como o símbolo
possível de um sistema
de símbolos do símbolo que é o mundo
―
o mundo apenas como a nossa paixão
posta diante de si ―
a paixão da paixão ―
nenhuma frase é dona de si mesma ―
e então o teatro que apresenta a
frase não é dono de nada
mas só do recurso
de ganhar uma regra e recusar a regra
ganha ―
assim como a voz abdica no silêncio e
o silêncio
abdica na voz para dizer apenas que é
uma forma de silêncio ―
um gênio animal inexplicável como uma
queda no escuro ―
enquanto as vozes são cada vez mais
astrológicas e loucas ―
e desaparecemos no silêncio levando
com uma grande
leveza a queimadura inteira na cabeça
(Herberto Helder ou O poema contínuo)
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