terça-feira, 2 de agosto de 2016


Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei / como um rio aguarda a cheia. / Gravidez de fúrias e cegueiras, / os bichos perdendo o pé, / eu perdendo as palavras. / Simples espera / daquilo que não se conhece / e, quando se conhece, / não se sabe o nome. (...). Nosso amor é impuro / como impura é a luz e a água / e tudo quanto nasce / e vive além do tempo. / Minhas pernas são água, / as tuas são luz / e dão a volta ao universo / quando se enlaçam / até se tornarem deserto e escuro. / E eu sofro de te abraçar / depois de te abraçar para não sofrer. // E toco-te / para deixares de ter corpo / e o meu corpo nasce / quando se extingue no teu. // E respiro em ti / para me sufocar / e espreito em tua claridade / para me cegar, / meu Sol vertido em Lua, / minha noite alvorecida. // Tu me bebes / e eu me converto na tua sede. / Meus lábios mordem, / meus dentes beijam, / minha pele te veste / e ficas ainda mais despida. // Pudesse eu ser tu / E em tua saudade ser a minha própria espera. // Mas eu deito-me em teu leito / Quando apenas queria dormir em ti. // E sonho-te / Quando ansiava ser um sonho teu. // E levito, voo de semente, / para em mim mesmo te plantar / menos que flor: simples perfume, / lembrança de pétala sem chão onde tombar. // Teus olhos inundando os meus / e a minha vida, já sem leito, / vai galgando margens / até tudo ser mar. / Esse mar que só há depois do mar. (...). Mente o tempo: / a idade que tenho / só se mede por infinitos. // Pois eu não vivo por extenso. // Apenas fui a Vida / em relampejo do incenso. // Quando me acendi / foi nas abreviaturas do imenso. (...) cruzo as mãos / sobre as montanhas / um rio esvai-se // ao fogo do gesto / que inflamo // a lua eleva-se / na tua fronte / enquanto tateias a pedra / até ser flor (...). Esse que em mim envelhece / assomou ao espelho / a tentar mostrar que sou eu. // Os outros de mim, / fingindo desconhecer a imagem, / deixaram-me a sós, perplexo, / com meu súbito reflexo. // A idade é isto: o peso da luz / com que nos vemos. (...). No oculto do ventre, / o feto se explica como o Homem: / em si mesmo enrolado / para caber no que ainda vai ser. // Corpo ansiando ser barco, / água sonhando dormir, / colo em si mesmo encontrado. // Na espiral do feto, / o novelo do afeto / ensaia o seu primeiro infinito. (...). Foi para ti / que desfolhei a chuva / para ti soltei o perfume da terra / toquei no nada / e para ti foi tudo // Para ti criei todas as palavras / e todas me faltaram / no minuto em que talhei / o sabor do sempre // Para ti dei voz / às minhas mãos / abri os gomos do tempo / assaltei o mundo / e pensei que tudo estava em nós / nesse doce engano / de tudo sermos donos / sem nada termos / simplesmente porque era de noite / e não dormíamos / eu descia em teu peito / para me procurar / e antes que a escuridão / nos cingisse a cintura / ficávamos nos olhos / vivendo de um só / amando de uma só vida 
(Mia Couto – o “tradutor de chuvas”). 
 





 













Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei / como um rio aguarda a cheia. / Gravidez de fúrias e cegueiras, / os bichos perdendo o pé, / eu perdendo as palavras. / Simples espera / daquilo que não se conhece / e, quando se conhece, / não se sabe o nome. (...). Nosso amor é impuro / como impura é a luz e a água / e tudo quanto nasce / e vive além do tempo. / Minhas pernas são água, / as tuas são luz / e dão a volta ao universo / quando se enlaçam / até se tornarem deserto e escuro. / E eu sofro de te abraçar / depois de te abraçar para não sofrer. // E toco-te / para deixares de ter corpo / e o meu corpo nasce / quando se extingue no teu. // E respiro em ti / para me sufocar / e espreito em tua claridade / para me cegar, / meu Sol vertido em Lua, / minha noite alvorecida. // Tu me bebes / e eu me converto na tua sede. / Meus lábios mordem, / meus dentes beijam, / minha pele te veste / e ficas ainda mais despida. // Pudesse eu ser tu / E em tua saudade ser a minha própria espera. // Mas eu deito-me em teu leito / Quando apenas queria dormir em ti. // E sonho-te / Quando ansiava ser um sonho teu. // E levito, voo de semente, / para em mim mesmo te plantar / menos que flor: simples perfume, / lembrança de pétala sem chão onde tombar. // Teus olhos inundando os meus / e a minha vida, já sem leito, / vai galgando margens / até tudo ser mar. / Esse mar que só há depois do mar. (...). Mente o tempo: / a idade que tenho / só se mede por infinitos. // Pois eu não vivo por extenso. // Apenas fui a Vida / em relampejo do incenso. // Quando me acendi / foi nas abreviaturas do imenso. (...) cruzo as mãos / sobre as montanhas / um rio esvai-se // ao fogo do gesto / que inflamo // a lua eleva-se / na tua fronte / enquanto tateias a pedra / até ser flor (...). Esse que em mim envelhece / assomou ao espelho / a tentar mostrar que sou eu. // Os outros de mim, / fingindo desconhecer a imagem, / deixaram-me a sós, perplexo, / com meu súbito reflexo. // A idade é isto: o peso da luz / com que nos vemos. (...). No oculto do ventre, / o feto se explica como o Homem: / em si mesmo enrolado / para caber no que ainda vai ser. // Corpo ansiando ser barco, / água sonhando dormir, / colo em si mesmo encontrado. // Na espiral do feto, / o novelo do afeto / ensaia o seu primeiro infinito. (...). Foi para ti / que desfolhei a chuva / para ti soltei o perfume da terra / toquei no nada / e para ti foi tudo // Para ti criei todas as palavras / e todas me faltaram / no minuto em que talhei / o sabor do sempre // Para ti dei voz / às minhas mãos / abri os gomos do tempo / assaltei o mundo / e pensei que tudo estava em nós / nesse doce engano / de tudo sermos donos / sem nada termos / simplesmente porque era de noite / e não dormíamos / eu descia em teu peito / para me procurar / e antes que a escuridão / nos cingisse a cintura / ficávamos nos olhos / vivendo de um só / amando de uma só vida (Mia Couto – o “tradutor de chuvas”).