Velho, não. / Entardecido, talvez. / Antigo, sim. / Me tornei antigo / porque
a vida, / tantas vezes, se demorou. / E eu a esperei / como um rio aguarda a
cheia. / Gravidez de fúrias e cegueiras, / os bichos perdendo o pé, / eu
perdendo as palavras. / Simples espera / daquilo que não se conhece / e, quando
se conhece, / não se sabe o nome. (...). Nosso amor é impuro / como impura é a
luz e a água / e tudo quanto nasce / e vive além do tempo. / Minhas pernas são
água, / as tuas são luz / e dão a volta ao universo / quando se enlaçam / até se
tornarem deserto e escuro. / E eu sofro de te abraçar / depois de te abraçar
para não sofrer. // E toco-te / para deixares de ter corpo / e o meu corpo
nasce / quando se extingue no teu. // E respiro em ti / para me sufocar / e
espreito em tua claridade / para me cegar, / meu Sol vertido em Lua, / minha
noite alvorecida. // Tu me bebes / e eu me converto na tua sede. / Meus lábios
mordem, / meus dentes beijam, / minha pele te veste / e ficas ainda mais
despida. // Pudesse eu ser tu / E em tua saudade ser a minha própria espera. //
Mas eu deito-me em teu leito / Quando apenas queria dormir em ti. // E sonho-te
/ Quando ansiava ser um sonho teu. // E levito, voo de semente, / para em mim
mesmo te plantar / menos que flor: simples perfume, / lembrança de pétala sem
chão onde tombar. // Teus olhos inundando os meus / e a minha vida, já sem
leito, / vai galgando margens / até tudo ser mar. / Esse mar que só há depois
do mar. (...). Mente o tempo: / a idade que tenho / só se mede por infinitos.
// Pois eu não vivo por extenso. // Apenas fui a Vida / em relampejo do
incenso. // Quando me acendi / foi nas abreviaturas do imenso. (...) cruzo as
mãos / sobre as montanhas / um rio esvai-se // ao fogo do gesto / que inflamo
// a lua eleva-se / na tua fronte / enquanto tateias a pedra / até ser flor (...). Esse que em mim
envelhece / assomou ao espelho / a tentar mostrar que sou eu. // Os outros de
mim, / fingindo desconhecer a imagem, / deixaram-me a sós, perplexo, / com meu
súbito reflexo. // A idade é isto: o peso da luz / com que nos vemos. (...). No
oculto do ventre, / o feto se explica como o Homem: / em si mesmo enrolado / para
caber no que ainda vai ser. // Corpo ansiando ser barco, / água sonhando
dormir, / colo em si mesmo encontrado. // Na espiral do feto, / o novelo do afeto
/ ensaia o seu primeiro infinito. (...). Foi para ti / que desfolhei a chuva / para ti soltei o perfume da terra / toquei no nada / e
para ti foi tudo // Para ti criei todas as palavras / e todas me faltaram / no
minuto em que talhei / o sabor do sempre // Para ti dei voz / às minhas mãos / abri
os gomos do tempo / assaltei o mundo / e pensei que tudo estava em nós / nesse
doce engano / de tudo sermos donos / sem nada termos / simplesmente porque era
de noite / e não dormíamos / eu descia em teu peito / para me procurar / e
antes que a escuridão / nos cingisse a cintura / ficávamos nos olhos / vivendo
de um só / amando de uma só vida
(Mia Couto – o “tradutor de chuvas”).
(Mia Couto – o “tradutor de chuvas”).